Na Europa do século XIV, na cidade de Altdorf, distrito de Uri, havia um governante austríaco, tirano e implacável, de nome Gessler. Um dos seus inúmeros atos abomináveis foi ter colocado seu chapéu no alto de um mastro, no centro da cidade, para que todos que ali passassem tinham que reverenciá-lo. Num certo dia, um cidadão chamado Guilherme (William) Tell e seu filho, passaram pelo local e não se reverenciaram perante o mastro. Foram imediatamente presos e condenados à morte por Gessler. Porém, ao saber do nome do acusado, Gessler lembrou-se de ter ouvido falar daquele homem, cujas características marcantes eram a integridade, honestidade e grande habilidade como atirador. Gessler, para manter sua autoridade, desafiou-o para uma prova na qual, se vencesse, ficaria livre, juntamente com o filho, além de remover o mastro com o chapéu do centro da vila.
A prova consistia em Tell atirar uma seta em uma maçã, colocada na cabeça do filho, a 100 passos de distância. Apenas um tiro seria permitido. Na hora da prova, após o total silêncio da população, Guilherme aprontou sua arma lançadora de setas, fez pontaria e disparou certeiramente na maçã, partindo-a em dois pedaços. Ao abraçar o filho, deixa cair ao chão mais uma seta. Gessler nervoso, pergunta à Tell a razão para aquilo. A resposta foi que, se a primeira seta errasse o alvo e matasse o filho, a segunda iria diretamente ao coração de Gessler. Credita-se à esse famoso ato, seja ele uma lenda ou realidade, o começo de uma revolução contra a tirania austríaca, que acabou resultando na independência de um país que hoje conhecemos como Suíça.
Uma besta do século XIV, um artefato ainda bem rudimentar.
A arma utilizada por Guilherme Tell neste episódio era conhecida como besta, também chamada de balestra (do latim: balista), que é basicamente um arco montado sobre uma estrutura rígida, em posição horizontal, e que atirava setas de madeira com ou sem pontas metálicas, à muita velocidade e com razoável precisão. Ao contrário de um arco e flechas tradicional, podia ser apoiada ao ombro do atirador com uma linha de visada mais direta.
Historicamente a besta remonta ao século IV a.C., na China. Os romanos a utilizaram por volta do ano de 300 d.C. A partir dos séculos X e XI elas começaram a se tornar armas importantes dos exércitos na Europa e Ásia, bem como no uso em caçadas. Os cruzados a levaram em suas hordas através da Europa, rumo à Terra Santa.
Um antigo esboço de uma besta, feito por volta do séc. XVI. Note a alavanca para se armar o arco, articulada no próprio corpo da arma.
A partir de 1550 as primeiras armas de fogo, arcabuzes de mecha e canhonetes de mão, começaram a ser adotadas pelos exércitos e foram responsáveis pelo declínio gradativo do uso militar das bestas. Porém, camponeses e caçadores ainda a usaram por muito tempo na Europa Central e no Norte. Curiosamente, na II Guerra Mundial, comandos australianos as utilizaram no Pacífico, bem como, posteriormente, unidades do Exército dos Estados Unidos, na Guerra do Vietnã. Em mãos hábeis e treinadas, é uma arma de grande precisão a curta distância e com a característica principal de não emitir nenhum ruído.
A denominação Armbrust, utilizada atualmente para a besta, principalmente nos meios esportivos, possui uma etimologia um pouco confusa. O latim nos indica a arma como sendo arcubalista, o que seria algo como arco centrífugo. Os franceses a chamavam de arbalète. A versão mais aceita é que houve uma combinação do prefixo arm, o que indicaria a sua utilização manual, com a palavra germânica berust, que significa equipamento. Daí teríamos armberust, posteriormente gerando a palavra armbrust.
Tornando-se com o passar dos anos um artefato puramente para uso em caça e tiro esportivo, aliado a uma natural tradição e cultura do povo suíço com essa arma, o Armbrust hoje é uma peça de alta precisão e tecnologia.
A ARMA NOS DIAS DE HOJE
No decorrer das últimas décadas a arma foi agregando inovações e avanços tecnológicos herdados das armas de fogo de competição. Materiais modernos, usinagem de alta precisão, eletrônica, ótica e tecnologia de ponta, fazem do armbrust de hoje algo completamente diferente do que sequer se imaginava no começo do século XX. Os pesados arcos em chapas de aço maciças foram substituídos por fibra de carbono; as cordas de aço trocadas por kevlar; os dispositivos de disparo, utilizando-se de circuitos eletrônicos sensíveis e sofisticados, aposentaram os gatilhos totalmente mecânicos; os aparelhos de pontaria (do tipo dióptro) cada vez mais preciso. Tudo isso torna a arma uma peça de alta tecnologia, tal qual os melhores rifles esportivos, utilizado em competições olímpicas. Possui também um nível de bolha na massa de mira, iluminado em alguns modelos mais recentes, que auxilia no correto posicionamento horizontal do arco. Os atuais fabricantes são, em sua grande maioria, suíços; alguns já foram competidores que se dedicaram à manufatura das armas, geralmente em pequenas oficinas com produção em baixa escala. Bruno Winzeler, de Zurique, é um deles. Especializado nesta arte, além de trabalhar por uns tempos na SIG, tradicional fabricante suíça de armas, residiu em São Paulo por cerca de tres anos, onde trabalhou em projetos envolvendo componentes plásticos e de alumínio. Desde 1984 se decica à fabricação de Armbrusts, em sua cidade natal.
Modelo recente de fabricação Winzeler dotado de gatilho eletrônico, nível de bolha iluminado, arco em fibra de carbono e cordas de kevlar. A coronha possui a peça de apoio da face regulada em altura. O site da Winzeler é http://www.winzeler.ch/de/
Modelo atual (113) de fabricação Winzeler, para prática do tiro a 10 metros (Foto: Winzeler)
Outro modelo, o 313, para tiro a 30 metros (Foto: Winzeler)
A arma dispara uma seta de 14cm de comprimento, feita de fibra de carbono ou de madeira, com ponta de aço. Antes de cada disparo, o arco necessita ser tensionado até se engatar no dispositivo do gatilho. Para isso, utiliza-se uma alavanca, geralmente feita de alumínio, que se encaixa em dois pinos, um de cada lado da arma, para servir de apoio. O esforço é razoável, cerca de 140 kg de tensão, mas nada que impeça que até as atiradoras jovens consigam fazê-lo. A seta é colocada sobre um trilho de aço, precisamente usinado, bem defronte à corda, já fixa em sua posição máxima. O gatilho, mesmo os que não são dotados de circuitos elétricos como na maioria das armas mais recentes, é sensibilíssimo, podendo ser ajustado para pressões a partir de 20 a 30 gramas. O peso médio de uma arma fica em torno de 8.300 kg e a seta pesa cerca de 35 gramas. A velocidade inicial é de aproximadamente 60 m/seg., atingindo o alvo em cerca de ½ segundo, quando o mesmo for posicionado a 30 metros.
Atirador prestes a disparar a arma, com a seta já posicionada no trilho base. À Direita, alça de mira tipo dióptro, com ajustes micrométricos laterais e de elevação, com diversas possibilidades de abertura da íris. Os dois pequenos leds azuis que se vê sobre o suporte, são indicativos do sistema elétrico de disparo do gatilho.
O ESPORTE
Como toda modalidade de tiro esportivo, o tiro com o Armbrust requer muita dedicação, treino, paciência e determinação. É uma das modalidades mais difíceis de tiro, devido a vários fatores: o manuseio constante da arma a cada tiro, no ato de se armar o arco e se reposicionar; equipamento pesado; posição física não muito confortável e cansativa, principalmente na modalidade ajoelhada; influência de fatores atmosféricos; baixa velocidade do projétil, etc. O uso de vestuário específico como casacos especiais, luvas e botas, colabora mais ainda para a fadiga, principalmente num país de clima tropical como o nosso. Portanto, o praticante de tiro com Armbrust é, antes de tudo, um obstinado.
Atiradora a postos em competição realizada na Suíça, utilizando um Armbrust de fabricação da casa Walther AG.
Para a prática do tiro, apesar do investimento inicialmente alto com armas e equipamentos, as despesas tendem a diminuir depois de algum tempo. Por outro lado, há fatores que pesam positivamente: o uso de munição reutilizável; o fato de ser tratar de um tiro “ecológico”, sem cheiro, sem fumaça e sem ruído; a ausência quase total de recuo, o que também é um fator que não “estressa” tanto seus praticantes.
Dupla de atiradores em treino na sede da Armbrustschützen de São Paulo. As armas são de fabricação de Bruno Winzeler da Winzeler Armbrustbau, de Zurique.
No Brasil a prática dessa modalidade de tiro é muito pouco difundida, sendo que a única associação sul-americana existente é a Armbrustschützen, de São Paulo. O clube, situado no interior do estado, é único no Brasil. Equipado segundo as normas da EASV, a Federação Suíça de Armbrust, possui cinco linhas automatizadas de tiro, onde se pratica principalmente a modalidade de posição ajoelhada, com alvo posicionado a 30 metros. Mundialmente, praticam-se outras modalidades e distâncias, como a de 10 metros em pé, chegando até às provas com distância de 100 metros. Países como Alemanha, França, Canadá, Bélgica, Áustria, Croácia, Holanda, Hungria, Slovenia e Rússia possuem diversos atletas e promovem campeonatos internos e internacionais. Mas é na Suíça que o esporte é mais praticado, contando com mais de 3.000 atletas federados.
No caso da modalidade onde a posição é ajoelhada, o alvo é feito de papelão branco, quadrado, posicionado a 30 metros, com um círculo preto, centrado, com 9,5 cm de diâmetro. O suporte para o alvo é geralmente feito com placasde madeira, tendo ao centro um batente de chumbo, com diâmetro aproximado do alvo, que evita danos à ponteira das setas.
Iniciantes na prática do tiro, quando em fase de treinamento, se utilizam de cavaletes para apoio, até que a ambientação com a arma permita seu uso posterior, sem nenhum apoio fixo. À direita, atirador em treino, enviando o alvo de volta à sua posição de tiro à 30 metros. Note que a área de tiro é geralmente ladeada por muros ou plantas para diminuir a ação dos ventos laterais.
O vestuário para a prática do tiro com Armbrust é, de certa forma, bem similar ao utilizado pelos atiradores de modalidades como Carabina Deitado ou Ar Comprimido: casaco, calças, luvas e botas. Os óculos especiais para tiro também são muito usados, principalmente pelos atletas que possuem algum tipo de deficiência visual ou, em alguns casos, simplesmente bonés com viseira para obstruir a visão do olho não dominante.
Os casacos e as calças, geralmente de couro sintético, são vestimentas rígidas e que ajudam a imobilidade do corpo na hora do disparo. As botas são de cano baixo, até a altura dos tornozelos, e as suas ponteiras são retas. Isso porque, na posição de joelhos, a ponta do pé direito toca o chão e assim evita que o pé se incline para os lados. A planta do pé esquerdo fica inteiramente apoiada no solo. Sobre o tornozelo direito, o atirador utiliza uma almofada de apoio pois, praticamente, ele se “senta” sobre o calcanhar. A bandoleira faz parte do equipamento e é de suma importância para manter a arma em posição imóvel. O atirador, quando bem posicionado e treinado, não exerce praticamente nenhum esforço físico para manter a arma em posição de tiro.
Seguindo a nossa linha editorial, na qual se pretende abordar, além do tiro com armas de fogo, diversas outras modalidades, eis aqui um breve panorama do que é a prática do tiro com esse tipo tão intrigante e fascinante de arma.
Fonte: Armas On-line
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